Pouso Alegre vai virar cenário de obra de ficção. Será lançado em 2015 o livro ‘Contos da Madrugada’, de Claudemir Nery de Lima. O livro usa como cenário principal a cidade de Pouso Alegre, sempre chamada no livro por Bom Jesus do Mandu.

O autor divulgou com exclusividade para o Pouso Alegre .NET, um dos contos ficcionais que estarão no livro: A rosa dos ventos. Confira:

Rosa dos ventos.

“Eu sou nuvem passageira,
Que com o vento se vai,
Eu sou como um cristal bonito.
Que se quebra quando cai.”
Hermes Aquino in Nuvem Passageira

No ano de mil novecentos e setenta e oito, Bom Jesus do Mandu recebeu a visita inesperada de Bartolomeu. Com nome de apóstolo, o visitante espalhou dor e conforto.

Nos versos de um poeta anônimo, escritos numa das paredes do mercado municipal e bordados por Rosa Amaranta num panô para a cozinha de sua patroa, a súmula de sua existência: “A beleza da flor, da escultura de areia e do cristal de gelo consiste em seu caráter de efemeridade. A flor de cera, a escultura de pedra e o cristal de diamante carecem de beleza porque não são efêmeros”.

Numa manhã comum de agosto, de neblina seca e céu achumbado, Rosa Amaranta de Jesus, bisneta de Gonçalo do Amarante – aquele que teve a morte anunciada pelas almas, numa noite de véspera de Todos os Santos, porque “num arrrespeitô os santo e nem as arma dos morto e eles viero buscá ele.” -, negra de dezenove anos, bela como a orquídea escura de Isabel, executava seus trabalhos domésticos na casa de dona Leonina Fernandes – conhecida apenas por dona Viúva –, como fazia todos os dias.

Dona Viúva tinha uma filha única, de nome Isabel, casada com o filho mais velho do engenheiro Benjamim. Isabel era seca, não podia ter filhos, gastava os seus dias esculpindo topiaria(1), cuidando das orquídeas e da grama de folhas verdes com riscas brancas. A botânica havia conseguido uma acentuada pigmentação preta numa Maxillaria schunkeana(2), que era a sua preciosidade. Havia acabado de esculpir num cipreste a figura de duas mãos abertas como que a sustentar um mimo invisível, batizou essa topiaria de Berço do Herói. A topiaria de Isabel era obra de arte pura; uma reportagem de cinco páginas na revista Manchete havia mostrado as obras de Isabel para o Brasil, em setenta e sete. Suas figuras foram catalogadas e consideradas como obras de arte vivas.

Rosa seguia a liturgia exigida por dona Leonina: as roupas precisavam ser lavadas de manhã, com água do córrego, usando apenas o sabão de cinza, que era feito com decoada(3); os lençóis da viúva eram cândidos, impecáveis, esvoaçantes no varal de arame. A imagem da negra Amaranta entre os lençóis brancos era de uma plasticidade ímpar.  Uma Maxillaria schunkeana entre dezenas de alvas Cattleya labiata(4). A pele de Rosa Amaranta era de um marrom enegrecido brilhante. Amaranta exalava sensualidade, trajando seu vestido branco de algodão cru.

Rosa havia trabalhado na casa grande da Praça da Catedral, na residência dos gregos Arvanitis. Stelios Arvanitis, neto do velho Nikos, se apaixonou pela beleza de Amaranta.  Stelios não soube lutar contra o seu clã pelo amor da mulher gostada. Um escândalo, Amaranta era negra e pobre. Só não era analfabeta, amava os estudos e o fazia com muita dificuldade. Os Arvanitis quando souberam do enrabicho de Stelios despediram a moça sumariamente.  E nos versos de outro poeta, também escritos numa das paredes do mercado municipal: “O maldito preconceito é visto até nos pastéis [de farinha de milho]: os de carne são arredondados e os de queijo retangulares.”

A manhã passava absolutamente normal, Isabel no gramado entre orquídeas e topiarias, Rosa Amaranta entre os lençóis e dona Viúva na cozinha no preparo do almoço. A cidade cresceu e chegou quase que às portas da sede da fazenda Nossa Senhora do Cedro; havia uma escola a uns quinhentos metros da fazenda, construída em terreno doado por Argentino Fernandes, o falecido marido de dona Leonina, a filha do casal fez os estudos primários naquela escola.

Pelas dez e meia, o galo de latão no centro das indicações norte-sul-leste-oeste, sobre o ponto mais alto do telhado da sede, denunciava em seu cata-vento atividade eólica no sentido oriente-ocidente. Do nada, um redemoinho se formou lá pelas bandas da mata do Corpo Seco. O redemoinho foi crescendo em tamanho e largura, seu uivo ensurdecedor chamou a atenção da cidade para o funil cor de terra, que ia do solo às nuvens, arrastando para seu ventre tudo que havia em seu caminho. Uma vez mais Bom Jesus achou que havia chegado o seu Armagedom. Viam-se botijões de gás, árvores, roupas, telhas e muito mais no bojo do furacão, que crescia, engordava e arrancava do chão tudo que havia em seu caminho.

O furacão passou pela fazenda Nossa Senhora do Cedro, enquanto Rosa Amaranta recolhia os lençóis do varal e Isabel salvava os vasos de orquídea. Não se via nada, apenas vento, barulho e poeira. Destelhou a escola e umas dez casas, derrubou o curral, arrancou gigantescas seringueiras com raiz e tudo, tirou da rua pedras do calçamento e quebrou postes da companhia de luz. Assim como havia surgido, a ventania sumiu antes de chegar ao rio Sapucaí.

Os momentos após a passagem do furacão foram de pânico, medo e desespero. As crianças da escola desceram a rua principal do Aterrado aos gritos, algumas mancando, outras com ferimentos leves e outras em estado de choque. Aquelas com ferimentos mais graves foram levadas para a Santa Casa.

A ventania trouxe um menino recém-nascido, enrolado em panos sujos, e o deitou no Berço do Herói, que Isabel tomou por seu filho; esse menino nunca foi procurado e nem reivindicado por ninguém.

Porque era o dia vinte e quatro de agosto, que é o dia de São Bartolomeu, o furacão foi batizado de Bartolomeu, e o menino do Berço do Herói de Natanael, que é o outro nome de São Bartolomeu.

Stelios Arvanitis tornou-se um queijeiro celibatário na empresa da família, o Laticínio Pótamo-Gala. Criou um queijo especial – caríssimo – com riscas pretas e rosáceas, chamou-o de Amaranta. Stelios Arvanitis se tornou um homem triste, nunca mais viu sua amada, porque Bartolomeu a levou para sempre.

1. Topiaria: Arte de adornar os jardins, dando às moitas e outros arbustos configurações diversas, principalmente no cipreste.
2. Maxillaria schunkeana: Espécie de orquídea. A orquídea negra.
3. Decoada: Cinzas fervidas e coadas; o líquido que é usado em lugar de soda ou potassa, na preparação do sabão caseiro.
4. Cattleya labiata: Espécie de orquídea.